sexta-feira, 30 de junho de 2006


desvendei teu segredo


choveu ontem , os carros passavam rápidos, água espanando as pessoas que esperavam no ponto de ônibus. mais tarde, ao olhar a noite no deserto da rua vi tua face refletida nas poças junto à calçada.
não há mistério no meu rosto ao espreitar o céu, acabado de lavar, negro, as estrelas largadas no aleatório.
não há mistério no meu rosto, não há mistério no teu.

há uma multidão e nem uma pessoa. são faces passageiras, perdidas, até que alguém toque a solidão do outro.

desvendei teu segredo. soube das tuas mãos presas no calabouço do medo. o corpo rendido à própria fraqueza, acuado pelos cães da angústia. o amor a desafiar tua vida segura pela própria fragilidade, literária .

desvendei teu segredo, o outro lado, a outra face, o outro homem. a montanha de contradições, delírio noturno e assombrado. o pranto oculto. o fantasma a perambular, ora hesitante ora agudo pelo labirinto das salas sem alma, das mãos femininas, das casas. as palavras a ocultarem tua verdadeira face.

desvendei teu segredo e secaria tuas lágrimas, fosse isso possível. o faria suavemente, sem mãos, sem palavras, apenas um olhar, próximo, continente.

desvendei teu segredo e não podes ver-me porque estás cego e eu ardo nos dias e noites. e porque ardo não podes me ver, estás cego e frio.
ainda ontem tive a justa impressão de que tropeçamos um no outro. tive a impressão de quase poder tocar-te, mas tocar-te só será possível se não estiveres cego e não ensudecermos nesta distância atlântica.
saberias que tenho um corpo e palavras e silêncios e um amor liberto. talvez desvendasses os meus segredos. talvez.


silvia chueire


quarta-feira, 28 de junho de 2006

poemas curtos


do desejo

no olhar alado do
desejo
perdem-se todas as palavras
desenha-se o gozo.

entrega

entregar-me
ao teu corpo inclinado
a boca a falar todas
as línguas


silvia chueire

segunda-feira, 26 de junho de 2006





escuta

escuta o que te digo.
escuta através das palavras,
além delas,
o outro lado do muro.
escuta a ternura .

não te atenhas ao rabisco das letras,
à sonoridade,
ou à forma.

escuta as outras canções que canto,
o colo ofertado sem medo,
as palavras a brotarem
das minhas mãos,
da minha pele ,
do meu sexo.

escuta os gestos , os braços,
as coxas trêmulas,
as palavras indizíveis,
as ditas,
as obscenas.

escuta a flor que renasce
e não diz versos, mas deseja.
e desejando encontra a poesia
a liberdade da paixão,
o poema.

escuta o que digo
para além do poema.
o olhar oceânico,
de quem sorri e chora
e não sabe ainda nada.

escuta-me
ou nunca saberemos
o que poderia ser.

silvia chueire

sábado, 24 de junho de 2006

Poeta ao espelho


Deslizou um rio nos teus braços
e não percebeste
as margens da água estendidas.
E não viste a líquida pele
encostada à tua.

Brandiste a palavra,
lâmina contra o dia.
Teu olhar colado ao espelho
ignorou a flor sinuosa
oferecida a ti.

Não é impune o gesto
embaraçado na arrogância,
no amor a si próprio.
Não encontrarás palavras
na imagem virtual,
apenas eco.

Delineias teu destino :
absoluta solidão.

Sem lábios que te acolham.

Silvia Chueire

sexta-feira, 23 de junho de 2006

Árabes - XXXII







Fogueira

séc XIII

Queimam-se os livros e todas as palavras-fumaça
enchem-me os pulmões de mágoa.

Onde estão Allah e seus homens,
enquanto outros humanos nos tiram a alma
expondo nosso sofrimento
nas pilhas de livros retorcidos?

Ah, esta adaga cravada, a fogueira,
sem música,
sem vozes que a tristeza.
As idéias escritas a evaporarem-se
nas chamas.

Mulher que sou,
desprezo o chador,
escrevo a revolta à sombra do carvalho.
Escrever é minha vingança,
os livros a arderem, minha dor.


Silvia Chueire

quinta-feira, 22 de junho de 2006

no azul



trago afogadas no azul
as palavras que diria.

mas o dia é maior que eu
o sol recusa subterfúgios.
não há recanto sem luz,
o mar entra-me pelos sentidos,
e eu me rendo.

será líquido meu destino

silvia chueire

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Inútil

É inútil, porque se o poema não nasce das pontas dos meus dedos, ou dos meus cabelos, dos meus pensamentos, ou olhos, não há meios de o laçar.
Tão inútil quanto certas coisas que digo. Coisas, digo. Mesmo quando no ápice do dia , a alegria abraça.

Tão inútil quanto ter corpo , às vezes. Para quê corpo se não amamos ?E não me venham com argumentos lógicos. Este é um texto livre .
Um corpo é inútil se não ama, repito.

Se alguém vê maior sentido que este no corpo, que se manifeste. Mas que o faça num poema, canção, ou mesmo em prosa. Sem melancolias, porque hoje a noite é para a visão lúcida das coisas. E o dia invadiu-me o sorriso.

Só sei que é inútil. Carrego um corpo e esta necessidade de escrever poemas.


Silvia Chueire

  Caos   Pandemônio instalado; as pessoas agarram sua sanidade a correr rua abaixo.   Há uma cachoeira -de mentes – a galope n...