quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

um dia


um dia o corpo acende os olhos
e tudo aconteceu
não viu Ipanema aos domingos
e o samba na Lapa

um dia o corpo acorda
acendido por uns olhos
ou pelo mar
e acha graça em si mesmo

um dia o corpo ri desatado
na plenitude de o ser
porque o tempo é uma invenção
da qual ninguém escapa

mas tomamos a vida nas mãos
e a bebemos



silvia chueire

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

tantos


o meu corpo
desdobrado em tantos
quantos quisesses

tantos quantos eu quisesse
no alto das tardes
em que nos amávamos

- com a fúria e a paz
de oceanos –


silvia chueire

sábado, 15 de dezembro de 2007

vício


a falta é um vício
a invadir a pele.
um vazio a cantar sem trégua

chamo por ela
como se apelasse,
a um destino imutável.


silvia chueire

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

o passo adiante


dar o passo adiante
todos os dias.
a náusea causada pelo excesso
a embaraçar-te os pés,
o precipício de cada minuto
a estrangular-te .

o que há de movimento organizado,
aleatório,
ou apenas ansiedade,
no mundo.
nesse excesso gigantesco que é o mundo.

o que há de sem sentido e louco
neste espaço de acasos,
neste espaço de ausências,
de vozes entrecruzadas e surdas,
os desencontros minando tudo.

o que há de vertigem
nas bordas de cada corpo gratuito,
cada minuto afundando-te
na angústia.
nestas horas de impuro silêncio,
sem mãos a te ampararem,
sem olhos a perceberem as mãos.

o que há de repentino terror
no assalto das sensações,
no florescer abrupto dos sentimentos
parados
frente ao humano trêmulo que és,
a desejar a morte.

a morte antes de tudo o mais,
porque a vida é uma impossibilidade constante,
dar o passo adiante, um peso insuportável.



silvia chueire

domingo, 9 de dezembro de 2007

Contextualizar


O poema é aleatório e chama.

Não sei porque chama,
porque arde,
nem como as palavras nascem
na cabeça e nas mãos
que se apressam a segui-la.
Nem como se organizam
as pequenas habitações do olhar,
palpitando sonoras,
vivas,
a me empurrarem para ele.
Não sei o modo do som
a me tomar a voz.

Só sei o relâmpago
a encher as folhas de palavras.
A paixão.


Silvia Chueire



quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

dá-me a tua mão


dá-me a tua mão,
para que eu possa decifrar
contigo o mistério
segredado pela noite,
agarrada aos corpos dos amantes.

este mistério que já nos passou,
cada um a seu tempo;
um sopro,
e se perdeu de nós.

dá-me tua mão,
para caminharmos loucamente
a rir do que se foi
e não nos pesa na memória.

dá-me tua mão,
para esquecermos tudo,
no oceano as cabeças
mergulhadas;
os corpos.


silvia chueire

sábado, 1 de dezembro de 2007

sobre acontecer


os dias são um vazio estranho,
tempo sem significado.

os olhos olham perplexos para a vida,
infamiliares com a ausência de acontecimentos.

chove mas não há ruídos,
faz sol mas não há calor,
fala-se e não se ouve voz,
dão-se passos na imobilidade.
tudo é ar parado,
reincidência de rotinas.

as perguntas teimam e teimam,
a nos beliscarem o corpo.

o que é um acontecimento,
a construção do tempo?


silvia chueire

domingo, 25 de novembro de 2007

pensar



penso em ti
a memória agarrada à minha pele
teu coração de palavras dançando
nos meus braços
teu amor a subir pelas minhas pernas
nossas idéias a derramarem-se das mãos
cada minuto fascinado por nós

pensar em ti é uma inevitabilidade


silvia chueire

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

passou


passou-te pela vida o amor,
pelo corpo,
encrespou-se o mar que eras.

o amor passou-te pelos olhos,
pelas palavras,
apanhou-te inesperado.

ao alto eras um corpo
e pensamentos amorosos,
um só milagre acordado na noite.

guardas nas mãos a memória
da vida te habitando os minutos
estremecidos .


silvia chueire

sábado, 17 de novembro de 2007

neo-real

o poema passeia pela cidade
tropeçando nas pernas dos transeuntes.
deambula cheio de hesitação,
a pensar se o revólver
carregado pelo menino
-e sua vida curta-
estará em algum verso.

a duvidar que a existência
vivida no ápice do desprezo pela vida,
na ponta de uma bala,
contenha em si algum lirismo.
talvez um violento lirismo neo-real
que dá a mão aos dramas mais comuns.

lá os dias são facas.


silvia chueire

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

a dor

a dor é um travo
um cravo na pele
amargo no sangue
espesso a circular
no coração cheio de cansaço

a dor é um cravo
a perfumar a noite
bate a angústia nas vidraças
a fraturar a calma
canta alto na madrugada
de insônias
inunda os nossos olhos
afoga-os
mastiga o sentido da vida


silvia chueire

domingo, 4 de novembro de 2007
















ao modo japonês

flores de cerejeira
sobre o chão
fino traço nipônico

ensaio sobre o belo
a cair

silvia chueire

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

anoitecer

anoitece de todas as maneiras,
a escuridão imiscuída entre as ruas
é um silêncio de ausências e omissões.
caem as casas na cidade desolada,
caem os pensamentos
feito espinhos,
e os homens recolhem-se à melancolia,
à consciência áspera das coisas.


não há redenção no amor
quando a pele a descolar dos ossos
é um vento a invadir cada minuto .


silvia chueire

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

marés

o mar a habitar o corpo
entregue a ti todos os dias
o sonho

o amor entrelaçado às pernas,
entregue ao sonho todos os dias,
o oceano

o sonho a habitar o amor
entregue à vida todos os dias
o corpo

o amor, o corpo,
o sonho, a ir e vir,
o oceano


silvia chueire

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

faca

a dor metida nos teus olhos
é uma faca.

olho-te
- quando não vês –
e espero que se vá a tempestade
que te cresceu nas mãos

se há que sofrer
a mim deviam caber estes dias
a dor não deve ser uma possibilidade
na vida dos filhos

facilmente tomaria para mim
a tua angústia
ver-te sorrir
é todas as coisas nos seus lugares


silvia chueire

sábado, 6 de outubro de 2007

verão

o sol abre o dia,
canta e canta nos meus cabelos
e sobre a pele.
acordo como se fosse ontem a noite
profundamente embalada
pela memória.

há um corpo inquieto
que fala da tua falta
e aconchega-a contrariado
entre os seios
e uns acordes de jazz.

cruzam em mim notas do cello,
uns agudos de violino
junto a frases melancólicas
que as mãos pretendem escrever.

mas o sol é impiedoso,
a tudo descobre e aquece
enquanto azula o mar.
azula-me
e canta uma canção outra.

deixo-me estar em silêncio,
o corpo aquecido
a dizer-me em alta voz:
vem novamente o verão.


silvia chueire

domingo, 30 de setembro de 2007

do poema - fuga


estou sentada
e olho os minutos
atravessados nas pessoas.
olho-os quase descrente
de que o tempo não se desdobre
em palavras ou ações todo o tempo.

as horas são um conjunto ilógico
de pragmatismos, estatísticas,
cidades a desmoronarem,
humanos desencontrados.
o poema foge de nós
dentro da noite.

eu sei, estou sentada e vejo
a fuga para o lugar obscuro
que habitava, antes
que eu o chamasse.
mas há crianças exangues,
bombas, cadáveres.
há silêncio mortal em meio ao sangue.

estou sentada como se fosse imune
e o tempo falasse comigo
a contar-me histórias antigas
para me distrair.
distraio-me de mim mesma.
mas o tempo, o mundo,
batem à porta dos meus olhos,
sem piedade.

e o poema esconde-se
nalgum vão da vida
o poema e o sentimento de mundo.


silvia chueire

quinta-feira, 27 de setembro de 2007






















observo-te

observo-te à distância,
castigado pela angústia,
no esforço de esquecer
que um dia foste livre e amaste.

pensas:
é tarde, nesta idade,
no mundo atônito com a violência,
o amor parece ainda mais ridículo.

e pensas que esqueces tua fome.
e te enganas.

silvia chueire

sábado, 22 de setembro de 2007

não se esquece

não se esquece
o curto corte no tempo
quando o instante alça
vôo inesperado
e nos revela
um corpo e palavras
a resgatarem-nos do silêncio
da noite

silvia chueire

sábado, 15 de setembro de 2007

Do alto do amor

Freqüentemente me esqueço que o mundo
tem a idade do olhar dos homens
para as coisas e as mulheres,
como se fossem deuses, ou baú de brinquedos.
Que as mulheres vivem na oscilação lunar
pisando ora em lâminas,
ora na areia da praia,
em pequenas taquicardias,
a oferecerem o seio ao amante,
ou ao pequenino que alimentam
com olhos mansos.

Freqüentemente me esqueço
da aguda mortalidade nossa.
Nossa, de todas as criaturas,
transfiguradas em pó ou pedra
ou numa árvore qualquer,
sem solenidade.
Apenas porque um dia surge
depois de outro.

Freqüentemente me esqueço
e quero o teu corpo
para amá-lo, abrigar-me nele,
por ele me deixar amar
atravessada de prazer.
Acolhida por ti em luz,
alegria, música
- o desejo atendido,
a atender-te.

Porque do alto do amor
pouco me interessa a questão metafísica da morte,
ou da possibilidade de não estarmos aqui
se o tempo do olhar
não corresponde ao tempo físico.



Silvia Chueire

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Dizer


Diz o teu amor a tocar as pétalas
do fogo que nos lambe os olhos,
e nos enche a alegria de significado.

Diz a tua extrema delicadeza
ao segurá-lo nas mãos,
o medo atravessado no teu sangue.

Diz o teu desejo incendiado junto
ao teu afeto no oceano de palavras
que te ocorrem. Diz a língua que te fala.
Diz.

E me espera.
No mesmo lugar de sempre.



Silvia Chueire

domingo, 2 de setembro de 2007














murmuras

murmuras uma canção aos meus ouvidos
e os meus pensamentos estremecem
na percepção de que o mundo é mais
e as rosas não se explicam.

murmuras a canção
e sei:
é inescapável a viagem.

as águas turbulentas cristalinamente
tentadoras,
a me chamarem:
vem.

silvia chueire

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

o mar vem


o mar vem à areia inevitavelmente,
amorosamente vem à areia.
ora furioso, ora terno,
vem à praia,
ou às rochas,
ou aos recifes.

vem porque é seu destino inarredável
vir,
voltar sempre.

em sua grandeza,
em sua amplidão,
em sua vida magnífica.

o mar é o sujeito de sua sina


silvia chueire

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

DOIS POEMAS CURTOS:

perder-me

perco os olhos no mar
e o pensamento

tudo é confronto e angústia
no largo silêncio
da água



silvia chueire



dia após dia


passa dia após dia
sobre a terra e a pele

não esqueço:
habitas-me
a murmurar as mesmas palavras
sobre o oceano


silvia chueire

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

tu (nós)

tu abrias as portas do mundo
e ele navegava os nossos corpos
escalava as nossas palavras
únicas nas nossas bocas
a língua
trabalhava novos significados
para a vida.

tu ousavas caminhar comigo
sobre as horas como se não fossem tempo
elas a servirem de cenário
para o destino:
nós
nada mais importava
às almas iluminadas
que a vida e suas taquicardias

tu dividias comigo a noite
e os pensamentos da noite
subiam-nos à cabeça e às mãos
como se fossem gestos
as idéias brilhando em nós
pela primeira vez
era sempre a primeira
e última vez
que nos amávamos
sempre


silvia chueire

domingo, 12 de agosto de 2007

esperança


o corpo devaneia entre
as almofadas de seda
e as curvas de fumaça
a atenção pousada na memória
rasga a noite
a lua cheia a emergir das nuvens

passa-se o tempo
e o meu amor não passa

há certa ternura
na mágoa desta (des)esperança



silvia chueire

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

rocinha-ipanema ao fundo













perpendicular

olho o dia em modo perpendicular

as casas dão passos
morro acima as pessoas
dão passos no afã
de sobreviver no caos
entre o sol
e o sal de cada dia

há uma crueldade
na repetição das coisas,
na sensação oblíqua
de imutabilidade

mas afinal tudo muda,
dizem.
e a beleza da paisagem
é inegável.


silvia chueire

terça-feira, 31 de julho de 2007



Este corpo

Olha, digo,
é este o corpo que tenho.
Não é um corpo de arestas.

Pudesses saber agora
em que píncaros,
em que precipícios ele se construiu,
saberias também o que tenho de pássaro.
O que de oceano, tenho.

O que de só carne e sangue,
artérias batendo contra as têmporas,
pequenas taquicardias
neste corpo desconsoladamente humano.
Que não recusa a glória de o ser,
nem sua submissão ao tempo.


Silvia Chueire




sexta-feira, 27 de julho de 2007

pedra é pedra


pedra é pedra
água é água
cidade permanece cidade
humanos são qualquer coisa
que não sei bem

onde está a poesia?
o mundo me olha
com olhos súbitos de desencanto
à luz imprecisa do entardecer


silvia chueire


domingo, 22 de julho de 2007

um só dia


respiro um fio de ar,
equilibro-me parcamente no tempo.
o corpo diz-me num sussurro
sobre o cansaço,
a dor e a memória
que o atam às tuas palavras,
à razão da falta.

suspensa entre as horas e a angústia,
faço de conta que os dias
são um só.

silvia chueire

sábado, 14 de julho de 2007

Dai-me


Dai-me trevas,
com elas construirei luz.

Dai-me o silêncio,
nele eclodirá a palavra,
surpreendente,
flor a sair das águas.

Dai-me o poder de pronunciar
a palavra, de nomear a coisa
que habitará cada verso.
Cantarei uma canção
entre o olhar e a realidade,
uma canção para sempre.

Dai-me o dom de perceber
a poesia pousada no mundo,
na face encantada do mundo,
no seu corpo maltratado.

Dai-me o privilégio
de ouvir a música
que vive nos gestos, no espaço,
no frágil equilíbrio da Terra.

Dai-me mãos e braços
para escrever o que sequer dizemos,
com eles produzirei novos significados
e alçarei vôo.
O vôo sutilíssimo do poema.



Silvia Chueire

terça-feira, 10 de julho de 2007

ao fio da voz


desfez-se o mundo
no assombro da tua voz afiada
cortando a noite.
e caíram todas as coisas:
meu corpo entregue ao teu,
os gestos que te esperavam,
teus olhos pedintes
e braços a encerrarem o amor,
nossas noites indormidas,
os corpos a rirem-se
debruçados no vinho
e na música
- todas as coisas.

ainda te procuro.
vejo-te nos lugares que tomaste para ti,
toco-lhes e encontro a tua ausência.

minha voz nada diz,
as palavras coladas à mágoa
cristalizam-se nos lábios.



silvia chueire

sábado, 30 de junho de 2007

new york city - erik gaugher























o passo adiante

dar o passo adiante
todos os dias.
a náusea causada pelo excesso
a embaraçar-te os pés,
o precipício de cada minuto
a estrangular-te .

o que há de movimento organizado,
aleatório,
ou apenas ansiedade,
no mundo.
nesse excesso gigantesco que é o mundo.

o que há de sem sentido e louco
neste espaço de acasos,
neste espaço de ausências,
de vozes entrecruzadas e surdas,
os desencontros minando tudo.

o que há de vertigem
nas bordas de cada corpo gratuito,
cada minuto afundando-te
na angústia.
nestas horas de impuro silêncio,
sem mãos a te ampararem,
sem olhos a perceberem as mãos.

o que há de repentino terror
no assalto das sensações,
no florescer abrupto dos sentimentos
parados frente ao humano trêmulo
que és,
a desejar a morte.

a morte antes de tudo o mais,
porque a vida é uma impossibilidade constante,
dar o passo adiante um peso insuportável.


silvia chueire

sábado, 23 de junho de 2007

retour a la raison - man ray

























perguntas

qual o destino dos corpos,
pergunto-me,
depois de mastigados pelas horas,
pelos gestos, desde o nascer do sol?
qual o destino dos corpos para além da deterioração,
ou logo antes dela?

qual o destino dos corpos entregues ao amor?
que destino terão depois de deixarem de ser o que são
para transformarem-se num outro
temporário e divino?
qual o destino nostálgico,
a melancolia bruta,
se nunca mais podem ser os deuses que um dia foram?


qual o destino dos corpos abandonados
pelos seus donos
sem propósito ou sentido,
quando nada mais desejam
senão serem o que são
e exercerem-no na sua glória?



silvia chueire

terça-feira, 19 de junho de 2007

ballet dancer- degas

























no desejo

meu corpo sobe nas tuas palavras,
no teu corpo,
alegremente.
dança na palma das tuas mãos
memória e palavras
o mar mergulhado em cada gesto

e morre
e ressuscita
no desejo


silvia chueire

quinta-feira, 14 de junho de 2007

percy thompson
















o sol deita-se

o sol deita-se lentamente
sobre as árvores e as pessoas
numa carícia antiga.
e as arvores e as pessoas deixam-se
dormitar,
embalam-se no calor das vozes
ao longe.

e na luz que se quebra.

silvia chueire

quarta-feira, 6 de junho de 2007



















rubra


há uma rosa rubra na noite
uma rosa de silêncios e segredos

estende-se na madrugada

ninguém sabe das pétalas irisadas
pelo orvalho.

há uma rubra rosa na noite
é tua


silvia chueire

sexta-feira, 1 de junho de 2007





















sobre partir e voltar


partes.
e os meus olhos e ouvidos
ficam a procurar por ti.
o corpo desamparado
inquieta-se,
diz-me coisas inconfessáveis.

voltas .
e é uma festa.
as palavras renovam-se,
os sentidos (re)descobrem o sentido,
o teu sorriso a descer
pelo meu corpo despertado.


silvia chueire

terça-feira, 29 de maio de 2007
























vivo

deparei-me com ele ao voltar para casa.
imponente, rebelado.
cinza, a elevar-se no movimento
de um balé furioso,
a bater, bater nas rochas,
sacudindo as crinas brancas,
espanando água,
alto, a erguer-se,
quase à altura da rua.

o mar é um animal vivo.

silvia chueire

quinta-feira, 24 de maio de 2007




















abril


abril nasce na boca de uma rosa
e diz a que veio no calor
quebrado pela limpidez do céu
de outono a despontar no trópico

este outono estrangeiro a ti
no qual florescem a buganvília
e a azálea que colorem a varanda

abril nasce nas mãos
no exato momento do poema
o poema nasce a respirar o ar agudo
do mês despudoradamente belo


silvia chueire

domingo, 20 de maio de 2007

vermeer- detail- woman writing a letter with her maid






























e o que é o dia?


o dia é tempo sobre tempo.
o mundo a se apagar
e acender-se.
a angústia subindo,
tocando as bordas da alma,
prestes a derramar-se sobre tudo.

e o dia se acende e se apaga,
alheio aos ossos cansados
de sustentar a carne
e seu estremecimento constante.


silvia chueire

quarta-feira, 16 de maio de 2007






















pouco sei

há um estremecimento explícito
sob as minhas palavras
quando te falo.
um submundo de intenções.

percorres-me o corpo
como se fosse teu.
e é.
e não é.

pouco sei,
se me perco contigo.
sei sobretudo
que há corpos
elevados à vida
e ternura derramada das mãos.


silvia chueire

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Árabes - XLII

























O momento

O trabalho toma as pernas e braços
dos homens todos os dias,
enche-lhes as horas de ocupações.
Eles pensam que são responsáveis
e que todos os jardins existem em função deles.

Nós calamos a ânsia de liberdade,
calamos o olhar atrás das burkas,
a boca cerrada, a alma em torvelinho.
E fingimos, os poemas encerrados nas mãos,
quase não existir.

Maternalmente cuidamos dos homens
com os olhos distraídos nas panelas e crianças
e regamos cada face masculina de vaidade.
Mas sabemos que as flores e as crianças nascem
porque as acalentamos e aos homens neste amor.
Alimentamos seus sonhos de superioridade
despidas de orgulho,
pela sobrevivência do que foi sempre ensinado,
A sabedoria disfarçada na arquitetura diária.

E tecemos nossas estratégias
a esperar o momento melhor.
O momento do grito,
da liberdade.
O momento.


Silvia Chueire

sábado, 5 de maio de 2007















inorgânico

poema inorgânico,
racionalidade precisa,
lâmina a tocar o prisma do gelo.

amarram-se às suas frases,
cristal, rocha, sal,
arquitetura inanimada
de tudo que um dia foi vida,
ou virá a ser .

poema frio,
pura estética,
que se aloja na rocha do mundo.
mudo de sentimentos,
pairando no interstício.

poema sem traço do humano,
a palavra nos sobreviverá ?


silvia chueire

quarta-feira, 2 de maio de 2007

















lembrar

lembro-me do teu rosto
antes de morreres
para o amor.

lembro-me das chamas
crescendo nas tuas palavras,
do teu olhar a dizê-las.

os dias a serem vida,
não tempo.

lembro-me de ti,
impecável nos atos,
distante da sombra
- pura azáfama –
que agora és.

silvia chueire

sexta-feira, 27 de abril de 2007






















flamenco


dai-me uma guitarra
um flamenco a contagiar-me
uma guitarra para os meus braços
e ancas dançarem livres

uma carmem
as cordas rascantes, as palmas
e os tacos a marcarem o solo
e o ritmo.

o ritmo na ponta do corpo

um copo de vinho
bebido sobre o riso
e as mãos a marcarem
a intenção de matar
ou morrer
de amor

a vida da música
dai-me


silvia chueire

domingo, 22 de abril de 2007

fingir


agarro-me à memória
de um dia,
da tua boca,
dos teus dedos.

perco-me no quarto,
a insônia a enrolar-se
nas minhas pernas,
eu a fingir que é o poema,
a voz a dizer-me vem.

e finjo magistralmente.
meus dedos pensam
que são teus
e adivinho
todos os teus passos,
neste corpo que recusa o silêncio.


silvia chueire

quarta-feira, 18 de abril de 2007

woman writing in book - georges de feure


















ainda a noite

a noite acolhe tão bem a dor
entre suas sombras ocultamos
qualquer coisa desamparada
qualquer coisa inevitavelmente lúcida


silvia chueire

sexta-feira, 13 de abril de 2007

paula rego - choke



















comum

tudo é comum como um sapato velho.

passada a graça,
os olhos mergulhados na bebedeira,
espancar a mulher
no alto da madrugada,

e virar o ronco para o canto.

depois dizer :
desculpa-me.


silvia chueire

domingo, 8 de abril de 2007

Bernard Tate - Free as a Bird














uma mulher


para eliane stoducto


uma mulher paira sobre a vida.
nas canções , nas palavras,
nos filhos ,
em cada passo
de um caminho árduo.

esta mulher, sua vitória
arrancada aos dias,
o sorriso, a franqueza
e as mãos generosas ofertadas,
dorme no coração do mundo.


ah rever-te o riso aberto,
a força,
a face iluminada.

adeus é uma palavra dura.

silvia chueire

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Klimt - Danae

















tua boca

tua boca é o meu sonho
a caminhar, passos lépidos
pelo meu corpo.

é o teu desejo ,
o meu desejo, chuva miúda
a chover pelo meu ventre abaixo.

silvia chueire

sexta-feira, 30 de março de 2007
















dai-me


dai-me o oceano nas palavras,
nos olhos.
o sal, a água,
o poema,
o horizonte líquido
a umedecer-me a pele.

dai-me o vento nos cabelos,
o sol na alma,
o corpo mergulhado no sonho.


e poderei morrer amanhã.


silvia chueire

sexta-feira, 23 de março de 2007

Árabes - XLI

Jerusalem from the mount of Olives - Frederic Edwin
















jerusalém

ir a jerusalém.
abraçar-te, meu amigo,
conversarmos entre o entusiasmo
do argumento e a alegria
do encontro

novamente de volta à mesquita.
tu a orares ao meu lado
ou eu elevada por um só deus,
entrando na tua sinagoga
- meu corpo nas pontas dos pés,
a respirar respeito -
crentes na melhor das crenças,
a que não separa humanos.

nossas mãos e nosso riso abraçados
minha terra sem muros em torno,
tua terra sem mísseis prontos.
a vida falando alto,
sem promessas, apenas lá.
a afagar a paz.


silvia chueire

domingo, 18 de março de 2007










cair


o céu cai ao chegar a noite
sobre suas mãos vazias.

põe-se a não dizer palavras,
a cegar os olhos para não as ler.
- precisa esquecê-las,
dizer que fiquem com ele,
onde não o veja .

não é dela o corpo,
curvas, pele
- ainda são dele .
só o desespero lhe pertence.

nem o andar esguio de um gato
anestesia seu corpo esquadrinhado
pela dor.
o grito tomba-lhe ao colo.

um trompete, em jazz,
rasga o ar,
apenas seus olhos afundam
no escuro.



silvia chueire

segunda-feira, 12 de março de 2007

cézanne - the strangled woman






















insanidade

lembro-me da tua insanidade
teus olhos cristalizados,
tuas mãos em garra.

não se esquece a ira a golpear-nos
com palavras,
ou o dia fraturado pela voz,
elevada à potência n.

a escorrer-te pela face,
pelos gestos,
o desprezo.
teu desprezo
pelo humano
a desvelar o caráter do homem.

tu a apoderares-te dos outros,
a usá-los,
meros objetos a passarem-te pela vida.

lembro-me do mal
infiltrado nas tuas palavras
habitando com elas
as mãos dadas com os dias.

lembro-me.
é preciso não esquecer
os dias negros.
é preciso não esquecer a loucura.



silvia chueire

domingo, 4 de março de 2007

Árabes - XXXIX


















esquecer

sob a videira meus olhos
vêem claro
as tuas palavras em concha
sobre os meus seios.

sob a videira, amado,
o amor é maior que nós
nas uvas que pendem,
nas folhas que ocultam.

sob a videira, esquecer
é uma palavra estranha,
feito morrer.


silvia chueire

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

na tarde


o mais íntimo de ti
alçado no esplendor do dia
as mãos na suavidade dos pelos
da nuca ofertada

a evidência do corpo
a procurar o teu
da boca inverossímil
saída do devaneio
para a tua realidade ereta

no alto do gozo
no alto da tarde
no alto do mundo


silvia chueire




quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

sitting woman- schiele




















espero


dei-te os dias mais preciosos,
as mãos e o corpo febris,
o pensamento lúcido,
os olhos lavados de ti.

esperei-te,
só se espera a vida.
as tuas palavras costuradas a mim
falavam-me do teu amor.

escuto os dias
desde que me deixaste,
rumo a um deserto,
no silêncio do tempo.

o tempo, meu amor,
é um universo a dançar nos corpos
atravessados de angústia.

espero, ao olhar
a distância de um oceano,
que venhas.
a felicidade é um dia possível,
se estás.


silvia chueire

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Árabes XXXVIII






















Morrer

Diz-me ó sol impiedoso,
como se entrega a vida à terra?

Diz-me em que rosas dormem espinhos
e não ferem.

Como uma mulher eleva a voz
e se rebela,
em meio aos corpos que sangram,
e ergue os punhos
e vocifera
e amaldiçoa a guerra que os leva?

Diz-me
como sou capaz de morrer tantas vezes
e ainda não morrer como devia?

Silvia Chueire

domingo, 11 de fevereiro de 2007

estudo para cabeça de apolo - velazquez

















imprevisto


nada me disseram sobre a adrenalina
a escalar-me o peito
quando te visse,
a tornar-me a garganta, deserto.

o teu cansaço nunca foi previsto
enquanto sonhávamos
os mais altos sonhos.
não foi previsto o teu silêncio
na felicidade a me abraçar
todas as manhãs.

calo a minha voz
nesta noite infindável.
só os meus olhos falam de ti
mergulhados num lago.


silvia chueire

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Árabes - XXXVII


















Hoje

Minha dor morreu hoje.
Enterrei-a na curva mais suave da figueira.

Não mais verá a luz,
a minha dor em lágrimas.
Nunca mais verá a lua,
o quarto crescente
a iluminar-me a voz.


Silvia Chueire




sábado, 3 de fevereiro de 2007
















A sul


A sul, bem mais a sul,
as cores colam-se nas palavras
e nas faces inclinadas contra o sol.

A sul para onde se quer ir
quando o inverno nos atinge
o íntimo desguarnecido.

Voar para sul, para o sonho liberto.
Encontrar o sul em nós mesmos,
os braços abertos ao mundo.


Silvia Chueire

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

















teus olhos



teus olhos escalam um mundo
quando se intrometem entre as minhas
palavras – seriam pernas?-

a trazerem o oceano
que sempre me habitou
sereno e furioso
antes de o navegares
e o tomares
e o tornares teu



your eyes

your eyes climb a world
when they dive
into my words
- or would it be legs?-
bringing the ocean
that has always lived in me
- serene and furious-
before you you sailed it
and took it
and turned it yours



silvia chueire





sábado, 27 de janeiro de 2007















surpresa


sentas sobre mim os olhos quietos,
a cara crivada de perguntas,
e na calma esperas
que eu te diga a verdade dos humanos

não tenho nas mãos a verdade.

a verdade sobe delirante
pelos elevadores da megalópole,
pela megalomania dos loucos,
e foge de nós.

tenho nas mãos a angústia,
alguma lucidez reservada,
e agarrada na face a surpresa cotidiana
do homem: sua grandeza impensável,
sua insuportável pequenez.


silvia chueire

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

os amantes- magritte















em nome do amor


todos os gestos enganosos
- a mentira, a hipocrisia,
o drama inventado,
a voz supostamente trêmula -
cometidos em nome do amor,
pretendem perdão.

mesmo a mão que agride,
a palavra que manipula,
que tira proveito.
mesmo a arma que mata.

descaradamente pretendem perdão
- como se o amor fosse um pulha
a enganar-nos todos.


silvia chueire

sábado, 20 de janeiro de 2007





















em pedra


tentas transformar em pedra
o que é sentimento
com a tenacidade de um alquimista
em busca da secreta fórmula,
além – ou aquém, não sei – dos átomos.

talvez consigas,
talvez o mundo te seja prodigioso
e te mostre a face mágica.

pessoalmente acho vão esforço.
pessoalmente, eu, que não creio em magias,
quedo a cabeça sobre as almofadas,
a pensar, enquanto um blues galga as paredes:

esta tenacidade no amor seria preciosa.


silvia chueire


terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Árabes XXXVI



















inverno

o inverno desliza
no corpo que espera.

quanto frio ainda haverá,
antes que ele chegue
e de novo as rosas desabrochem
e com elas a cor pinte meu rosto?

desde que se foi o meu amado
não há almíscar,
o perfume desertou a vida,
o vinho não sabe a prazer.
já não me acolhe, a noite,
é escuridão sem voz .

o vento não se oculta no deserto,
nem fala aos meus quadris
nenhuma dança.

desde que se foi o meu amado
o inverno não se cansa de ser eu.

silvia chueire

sábado, 13 de janeiro de 2007
















de outono


tenho olhos para ver
os teus olhos de outono
a me falarem na distância,
teus gestos.

é sempre outono,
a nossa estação.
as horas correm entre as árvores
do lugar onde te espero.


silvia chueire

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

strangled woman - cézanne
















fazer morrer


se a morte andava pelas tuas mãos
não era de propósito.
descuidado, era seu modo de andar.

também tu a chamavas inadvertidamente
teu amor por ela era maior
do que todos ao teu redor

o que poderias fazer
desta paixão pelo avesso da vida,
pelo avesso do afeto?


silvia chueire

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007






















(im)possível

era uma lua alta sobre a chuva
e os fogos
e a cidade em combustão.
era uma lua oculta,
uma lua silenciosa,
uma quase-palavra que eu diria a ti,
um gesto.

repentinamente horas
em que tudo parece ontem
e estou suspensa em segundos mudos
sob o grito da noite e das pessoas.

só eu sei a palavra (im)possível.


silvia chueire



  Caos   Pandemônio instalado; as pessoas agarram sua sanidade a correr rua abaixo.   Há uma cachoeira -de mentes – a galope n...