
da falta
meu corpo dobrado sobre si
percebe claramente
a distância e a falta
a lhe colarem a pele de angústia
são dias longos de silêncio,
desejar é o avesso da falta.
o que desejas, corpo meu,
se ele não está?
silvia chueire
Se os dias, as palavras, os afetos a subirem-me pela face forem generosos e o meu olhar agudo,talvez escreva um poema, um conto. Por ora são anotações esparsas. In the meadow. Ao som do mar.
respirar a cidade
respiro a cidade
com a força de quem não a quer deixar fugir,
a intenção firme de trazê-la
um pouco mais para mim.
não a perder,
tê-la sob a pele.
a luz, o espetáculo do rio,
os telhados numa alegoria da vida
que percorre as ruas e os sorrisos,
as casas e a melancolia.
respiro a cidade
- o país -
com a determinação de manter a memória
viva, a cidade pulsando
no meu corpo,
os rostos dos amigos brilhando
na noite, as garrafas de vinho
e as palavras ouvidas nos dias.
nos dias o sol e a chuva
a produzirem novas cores.
respiro a cidade
antes de deixá-la,
levo-a comigo.
silvia chueire
III
para l.p.
transportamos na pele um paíssilvia chueire
havia apenas o mar nos olhos, uma vaga aflição e a espera amorosamente tecida nas canções, quando a lâmina tirou-lhe a voz da garganta e o oceano do peito. de um só golpe decepou-lhe a realidade e o sonho.
todas as justificativas para a dor são injustificadas quando o amor é óbvio e olha com olhos de esperança. recapitulados os dias perfeitos, impecáveis, indescritíveis dias de fascínio, nada mudou. como se um furacão de acontecimentos não a tivesse surpreendido.
"entre as quatro paredes do meu peito, só eu sei. só eu sei o que espero e o que desespero", foi a única pista rara vez sussurrada a alguém.
no mais, permanece sentada à mesma janela de sempre. diz coisas incompreensíveis vez em quando. lê um livro.ouve música. olha em torno como se acordasse do sono, entoa alguma canção qualquer, vai e volta, sorri, diz às pessoas coisas gentis, prováveis. mas permanece lá, nas noites inquietas, a conversar com ele que já não está. a espera, o desespero, raramente visíveis.
na sala, no quarto, no corpo, em todo lado os sinais da vida desfeita, que só ela sabe.
silvia chueire
de medo
era um dia de medo sob as nuvens, um dia de música ignorada, o medo nascendo feito jato de água, do peito espalhando-se pelo corpo, a tremer tantos terremotos, a terra fosse revirar-se, a náusea a subir e descer.
era um dia de medo e nestes dias é que renunciamos viver. assim foi.
ela observava, às vezes a murmurar, nunca fora capaz do silêncio de pedra. observava, cada vértebra estremecida, pedindo : não, assim não. cada pensamento voltado para o acontecimento : a vida estancada, parada na borda do caminho à margem árida do que estava por vir.
mas nossas mãos nunca podem remover o medo alheio, por mais que prometam o paraíso. cada um procura o inferno que bem entende.
eram dias de tenebroso terror para os quais ela olhava sem acreditar que poderiam ser. dias de inundações, de ondas desgovernadas, de vozes chocando-se contra as paredes, contra a sua face incrédula.
também temeu. temeu o esquecimento de que eram felizes, tão mais felizes do que podem ser as pessoas no nosso tempo. sabia que a felicidade tem tanto peso quanto a morte, ambas não se deve esquecer.
eram dias de terror inerente. desaguaram em milhares da palavras, numa corrente líquida de palavras desesperadas, de pensamentos a procurar um nexo, qualquer nexo. mas qualquer nexo corria à solta das coisas, chorava-se a lágrima pura da dor.
era ela entre as paredes, a tecer as razões de tudo.
ela , penélope caricatural a repetir perguntas e respostas, tentando entender a turbulência . campos e campos de dor.
não se toma o medo alheio nas mãos e se o desfaz com gestos amorosos.
o medo alheio é uma intrincada floresta de dúvidas que não nos pertencem, de renúncias que não são nossas. nunca renunciou, nunca cedeu ao medo. mas a nossa coragem não é a coragem do outro.
era uma casa tristemente quieta de maio, a sua casa. tapou o seu rosto com a máscara do sorriso, calou sua voz entre as notas de uma qualquer música, e foi vivendo os pedaços da mulher que era, até que os recompusesse um dia. até renascer.
hoje, renascida, pensa : um dia a felicidade há de ser uma coisa natural.
silvia chueire
para a.f.
nada disto é explicável.
nenhuma das palavras surpreendentes
que dissemos.
nem quando ou porque surgiu o amor.
não se explica a sensibilidade
extrema no seu nascimento,
o cuidado,
o desvelo dos gestos.
nunca soube porque entendia
mesmo o que não dizias,
nem como soubeste de mim, sempre.
nossos beijos,
as mãos, as bocas,
a percorrerem o mundo
dos corpos no amor.
como nos abandonamos,
sem receio.
o que os lábios sabiam antes de nós,
a pele, os olhos.
a intensidade deste encontro
nadando nas pálpebras,
nos dias.
a estender-se nas palavras.
nunca sei,
não se explica o amor.
entrega
entregar-me
ao teu corpo inclinado
a boca a falar todas
as línguas
silvia chueire
escuta
escuta o que te digo.
escuta através das palavras,
além delas,
o outro lado do muro.
escuta a ternura .
não te atenhas ao rabisco das letras,
à sonoridade,
ou à forma.
escuta as outras canções que canto,
o colo ofertado sem medo,
as palavras a brotarem
das minhas mãos,
da minha pele ,
do meu sexo.
escuta os gestos , os braços,
as coxas trêmulas,
as palavras indizíveis,
as ditas,
as obscenas.
escuta a flor que renasce
e não diz versos, mas deseja.
e desejando encontra a poesia
a liberdade da paixão,
o poema.
escuta o que digo
para além do poema.
o olhar oceânico,
de quem sorri e chora
e não sabe ainda nada.
escuta-me
ou nunca saberemos
o que poderia ser.
silvia chueire
Sábados Há sábados que são uma gargalhada, uma exaltação do corpo, dos afetos. Há sábados a voar por aí que nos pertencem de...